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"O Coringa" (2019) de Joaquin Phoenix | Análise Crítica

Existem muitos vilões icônicos da cultura pop e o Coringa, sem sombra de dúvidas, é um deles. Originalmente escrito como um personagem antagônico nas histórias do Batman, o Joker tem agora o destaque nessa obra cinematográfica dirigida por Todd Phillips.

Somando um total de 11 indicações ao Oscar - incluindo de melhor filme e melhor ator, para Joaquin Phoenix - o longa é daqueles que se tornam inesquecíveis, do qual sempre haverá um cinéfilo falando sobre naquela rodinha de amigos. Ele traz diversas questões para serem discutidas e analisadas: desde o desenvolvimento de um distúrbio mental e o descaso da sociedade diante de tal problema, até a insatisfação da sociedade para com os políticos e sua forma equivocada de encarar as questões sociais das quais eles só possuem conhecimento teórico.

Um Deslumbramento Cinematográfico

Em termos técnicos, o filme é maravilhoso. Fotografia, figurino, trilha sonora, roteiro, atuação, direção, enfim, tudo é impecável. É um espetáculo cinematográfico que cumpre imensamente bem o papel de chocar o espectador. Se eu pudesse resumir esse filme em duas palavras elas seriam: desconforto e desespero.

A atuação entregue por Joaquin Phoenix é perfeita em suas diversas nuances. Ele representa muito bem a instabilidade do personagem e consegue, ao longo do filme, entregar de forma sutil toda a confusão e angústia que o Coringa carrega dentro de si.

Focado na construção e desenvolvimento da psique do personagem principal - e também com a escolha de Robert De Niro para o papel de Murray Franklin - o longa evoca alguns dos filmes do começo da carreira de Martin Scorsese, como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1983). Possui uma similaridade ainda maior com esse segundo filme, pois ambos possuem como personagem principal um indivíduo solitário que mora com a mãe e sonha em se tornar um comediante de sucesso.

Ambientado em uma Gotham City da virada da década de 1970 para 1980 - ou seria Nova York na década da ascensão do neoliberalismo? - pouco parece com o que estamos acostumados a ver da cidade do Batman: não parece nada irreal. A violência, a sujeira, a poluição, o descaso, a corrupção... é tudo muito próximo do que o espectador vivencia no dia a dia. Talvez por isso o filme tenha tanto sucesso em tocar o público de alguma maneira.

Percepção dos Temas Abordados

Com uma narrativa que foca na psicologia do indivíduo, a discussão primária abordada no longa é referente ao descaso frente aos transtornos psicológicos. Tanto da sociedade, que trata Arthur como a escória, sempre abusando física e verbalmente dele. Também de sua psicóloga, que está ali apenas para cumprir uma obrigação, como fica claro na cena em que ele a confronta ela dizendo "Você não me ouve, né? Apenas faz as mesmas perguntas toda semana". Ainda nessa cena percebemos também o descaso do governo quando a psicóloga anuncia que as verbas foram cortadas e que todo o atendimento feito com Arthur - e outras pessoas que necessitam tanto quanto ele - serão cessados.

Em um momento do filme podemos ver Arthur escrevendo em seu caderno uma frase que deveria fazer todas as pessoas desse mundo repensarem suas atitudes frente às doenças mentais. Quando lemos que "a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse" é como um soco no estômago do espectador. E isso fica evidente durante todo o filme. Todas as vezes em que Arthur tem uma crise de riso descontrolado, isso causa desconforto tanto no espectador quanto no personagem que está interagindo com ele. Alguns aparentam até mesmo uma certa raiva. E não há qualquer alteração no comportamento, mesmo sabendo que ele não tem controle da risada. Se nós, meros espectadores do sofrimento e descontrole psíquico de outrem nos sentimos tão desconfortáveis e algumas vezes até pessoalmente atacados, como se sentem as pessoas que possuem tais distúrbios? Em um momento onde pregamos a empatia com o próximo, por que é tão difícil nos colocar no lugar dessas pessoas e perceber o sofrimento que tal condição as causa? Imaginem, por um momento, como é não poder confiar em você mesmo. Nos seus pensamentos ou nas suas reações. Como deve ser estar a todo momento esperando que você seja acometido por um ataque que poderá te deixar incapacitado e embaraçado.

Não encontramos conforto nem mesmo no círculo familiar de Arthur, muito pelo contrário. Sua mãe apelidou-o desde menino de Happy (ou Feliz). E sim, ela tinha seus próprios problemas para lidar, porém não demonstrou que poderia ser um suporte para Arthur enfrentar seus problemas. E mais tarde são revelados acontecimentos do passado de Arthur e sua mãe que nos faz questionar o amor e a capacidade dela em cuidar de um filho. É importante entendermos que essa é a realidade de muitas pessoas que possuem algum tipo de transtorno psicológico, sendo frequentemente negligenciada pela sociedade e pela própria família.

Outra discussão que o filme se propõe é a política. Quando Arthur comete seu primeiro assassinato a sociedade se inflama e surgem pontos de vista completamente opostos. O que podemos perceber dessa abordagem é que as opiniões dos políticos ou principais figuras de destaques da mídia, que no filme é personificado por Thomas Wayne, não reflete com veracidade a opinião da sociedade. Em um momento vemos Wayne em entrevista dizendo como foi cruel o assassinato dos jovens no metro e como eles eram boas pessoas. Em contrapartida, fomos apresentados aos jovens anteriormente em um momento onde eles tomavam atitudes que boas pessoas não tomariam. Atitudes estas que muitas vezes são encobertas por terem sido cometidas por pessoas de classe alta. A sociedade, cansada do descaso e da desigualdade, entende o assassino com a máscara de palhaço quase como um salvador. Um ícone da justiça que eles precisam. Temos, então, duas narrativas: a) aquela contada pela classe alta, ricos que estão anos luz de distância dos problemas sociais e de perceber a real crueldade do ser humano e deles próprios; e b) o cidadão médio, desprovido de privilégios que enxerga em um comportamento tão extremo a solução para os problemas cruéis e a violência desenfreada que está presente em seu dia a dia.

Quando as pessoas vestem máscaras de palhaço e vão em protestos e manifestações, inspirados pelos assassinatos cometidos por Arthur, ele se sente admirado pela primeira vez na vida. E assim, vem a validação de seus atos. É como se ele finalmente encontrasse o seu talento, após tantos anos tentando ser comediante e não obtendo sucesso algum. E, a partir daí, vemos uma mudança em Arthur, que passa a se parecer muito mais com o Coringa, agente do caos.

Coringa, O Agente do Caos


No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), dirigido e co-roteirizado por Christopher Nolan e estrelado por Christian Bale, temos o Coringa que foi interpretado com perfeição por Heath Leadger, ganhador de um Oscar póstumo por sua atuação. Em um momento do filme, Heath Leadger está conversando com outro personagem em um hospital e diz a frase que, pra mim, melhor define o Coringa: "eu sou um agente do caos.".  Todd Phillips utilizou-se de todas as possibilidades para demonstrar essa característica do personagem.

Quando Arthur mata os homens no metrô, ele começa a se tornar um agente do caos. Causa um impacto em toda a sociedade e passa a ter sua imagem, a do Coringa, atribuída a um estado caótico de luta por justiça e direitos. Apesar de ser um ato horrendo, a sociedade apoia e muitos se sentem pessoalmente vingados. Essa é então a emoção que os atos do Coringa despertam e o motivo pelo qual as pessoas o acolhem em seu papel de agente do caos: vingança.

No ponto mais impactante do filme, que não vou expor para evitar maiores spoilers, o Coringa perpetua seu papel de agente do caos. Antes de irmos para a última cena, o ambiente é um completo caos. E Arthur está apenas admirando tudo, com um certo orgulho. É, talvez, o momento mais feliz de sua vida. Ou o único momento feliz. Quando ele se sente vingado e ovacionado. Como se fosse um exemplo a ser admirado e seguido.

Joaquin Phoenix conseguiu trazer com perfeição a sensação de instabilidade do personagem. A gente nunca sabe exatamente o que está acontecendo em sua mente, quais podem ser suas próximas ações. Um detalhe que eu achei muito interessante é que a partir do momento em que Arthur passa a se transformar no Coringa, admitindo sua tristeza e lidando com o mundo como o criador de caos que ele, no fundo, é (ou se tornou, durante a sua vida) o transtorno que o faz rir descontroladamente parece desaparecer. É como se ele estivesse rindo da contradição e crueldade da vida, enquanto seu psicológico é esmagado e destruído. Quando, por fim, ele assume seu papel de agente do caos e começa a praticar os assassinatos, sua risada parece mais autêntica. A cena final onde ele aparece rindo de uma piada que, segundo ele, nós não entenderíamos, deixa subentendido o quanto a crueldade e o caos o divertem. Coisa difícil para a maioria dos seres humanos entenderem.

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